O hábito de disseminar notícias falsas não é propriamente um fenômeno novo, mas, na contemporaneidade da era digital, ele foi propulsado por um fator-chave, a velocidade de compartilhamento. Inundadas por opiniões, impressões, boatos e fatos distorcidos ou imprecisos, as redes sociais têm sido um dos ecossistemas mais propícios à relativização do conceito de verdade. Nesta quinta-feira (13), a rede social Facebook anunciou o bloqueio de mais de um bilhão de perfis falsos, entre outubro de 2017 e março deste ano, com o objetivo de impedir interferências eleitorais em vários países, inclusive no Brasil. No dia 11 de setembro, o Instituto de Estudos Avançados (IdEA) da Unicamp, em parceria com o jornal Folha de S.Paulo, promoveu o Seminário Pós-Verdade, formulando importantes questionamentos e buscando respostas com especialistas sobre as chamadas “fake news” e como elas influenciam os rumos do debate na sociedade.
“Uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade”. De autoria não comprovada, este provérbio há sete décadas é atribuído ao ideólogo do nazismo Joseph Goebbels (1897-1945), ministro da Propaganda de Adolph Hitler. Um estudo publicado em março pela revista Science ajuda a entender como esse ímpeto pela fraude funciona na rotina da rede mundial de computadores e quais suas motivações. A pesquisa identificou 126 mil histórias inverídicas compartilhadas por três milhões de vezes pelo Twitter, entre 2006 e 2017, e constatou que a probabilidade de compartilhamento de uma notícia falsa é 70% maior do que o de uma notícia verdadeira. O impulso para multiplicar o alcance de inverdades pode ser compreendido, pelo menos em parte, porque elas são mais atraentes ao leitor por serem mais divertidas, curiosas ou improváveis.
A jornalista Paula Cesarino Costa, ombudsman da Folha de S.Paulo, que citou os resultados desse estudo durante o seminário, apresentou algumas de suas conclusões. “O modelo de negócios das redes sociais incentiva essa propagação de mentiras, uma vez que a cada clique que se dá em uma notícia existe um ganho financeiro. Como as notícias falsas são muito mais acessadas, dão muito mais dinheiro.” Para ela, no ponto de partida do debate está a necessidade de conceituar o objeto. “Por princípio, notícias não são falsas. Se são falsas, não são notícias.” Em sua experiência diária como ombudsman de um dos maiores jornais do país, Costa relata que os leitores costumam considerar como “notícias falsas” uma variedade de erros, distorções, omissões, invenções e mentiras propriamente ditas.
O serviço de checagem de notícias falsas criado pela Folha de S.Paulo em julho recebe em média 25 mensagens por dia, o que tem obrigado o jornal a deslocar repórteres para essas verificações. Em um cenário de crise do modelo de negócios da imprensa e de enxugamento nas redações, isso se torna um complicador a mais. “O que talvez deveríamos considerar como notícia falsa é a narrativa deliberada que falseia os acontecimentos.”
Uma das questões candentes do debate é de que maneira a sociedade poderá se certificar da veracidade de uma notícia e quem deverá se encarregar desse ônus, que muitas vezes obstrui o papel da imprensa de buscar novas histórias e pautar a agenda pública ao ter que desmentir histórias muitas vezes absurdas. O jornalista Eugênio Bucci, professor da Escola de Comunicações e Artes da USP, afirma que, em vários países, o poder público tem participado na criação de mecanismos preventivos para apoiar a imprensa nessa iniciativa. “No Brasil, isso ocorreu com uma iniciativa do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O risco, quando o Estado se envolve, é que alguém tenha a brilhante ideia de censurar as coisas, mas nós não tivemos isso no Brasil.”
Além da velocidade, da escala e do modo de produção das notícias falsas, que as distinguem dos princípios básicos do jornalismo, Bucci aponta como novidade no fenômeno das “fake news” a maneira como se apresentam, revestidas de uma prosa jornalística. “A mentira é tão antiga quanto a linguagem, tão antiga quanto a cultura e a humanidade, mas o modo de fabricação de mentiras a partir da falsificação da condição jornalística posta hoje é um dado novo. E ele corrói por dentro, como um vírus, as bases da política e, com isso, afeta a democracia.”
Para o filósofo Pablo Ortellado, professor de Gestão de Políticas Públicas da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP, é necessário fazer uma distinção entre erros jornalísticos e notícias maliciosamente manipuladas com a intenção de favorecer interesses políticos ou econômicos. Ortellado prefere usar o termo “notícias hiperpartidárias”, que não são frutos de erro de apuração, mas destaca que há uma dificuldade de se identificar a intenção do autor do texto.
“Nesse fenômeno estamos vendo a migração do boato político para a forma jornalística. Por exemplo, nas eleições de 2014, não tivemos notícias falsas no sentido próprio do termo. Porque o jogo sujo político de 2014 teve a forma do boato. E a capacidade persuasiva do boato advém do testemunho, alguém que teve acesso a uma verdade, que supostamente estava escondida, e a força desse testemunho é que persuade a acreditar naquela informação”, opinou o filósofo. Atualmente, defende Ortellado, as “notícias engajadas” emulam a forma jornalística e tentam convencer o leitor.
Na mesa “Eleições e fake news”, a advogada Taís Gasparian discutiu questões legais sobre as dificuldades para inserir esse tema no ordenamento jurídico brasileiro. Segundo ela, há atualmente sete projetos em tramitação no Senado Federal e dois na Câmara dos Deputados que tentam criminalizar ou remover a publicação de “notícias falsas” na internet, o que pode abrir caminho para a censura.
A advogada, especializada em ações de mídia e imprensa, se disse muito preocupada com a possibilidade de remoção de reportagens a pretexto de decisões da Justiça, assim como com a figura jurídica do “direito ao esquecimento”, que vem sendo debatida recentemente. “Ainda que a notícia seja mentirosa, ela não deve ser removida da internet”, declarou Gasparian, favorável à inclusão de erratas e desmentidos que esclareçam os equívocos, mas permaneçam como registro de uma época para conhecimento da sociedade e como matéria-prima para estudos futuros.
Uma das características das notícias falsas é a volatilidade, considerando que os desmentidos e as checagens também acabam se beneficiando da velocidade da rede. José de Souza Martins, sociólogo e professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, alerta, entretanto, para a necessidade de se atentar para o que ele chamou de “‘fake news’ de longa duração”. Segundo ele, um exemplo é o caso da politização da religião que vem ocorrendo há décadas no Brasil, mais evidente durante as campanhas eleitorais. “Há uma tentativa de despolitizar a política politizando a religião. Isso é bastante claro no caso brasileiro. Nós deveríamos prestar atenção nas ‘fake news’ de longo prazo. Estamos há 50 anos nesse processo que envolve a transformação da religião em partido político, e nós não estamos discutindo isso.”
A jornalista Laura Capriglione, do site Jornalistas Livres, chamou de “extremamente desleal” a tentativa de parte da sociedade de apontar as redes sociais como a fonte primordial das notícias falsas. “Apontam o dedo para rede social como se a imprensa profissional nunca tivesse produzido ‘fake news’, nós sabemos que produziu e não produziu pouca. Produziu muita.” O imenso potencial que internet abriu para o exercício da prática jornalística pela imprensa independente e pelos grupos comunitários, opina Capriglione, tem tornado a grande imprensa prescindível. “Eu prefiro viver no mundo que vivemos hoje”, explica a jornalista. “Eu publico uma notícia agora e, no segundo seguinte, tem alguém falando: ‘isso é mentira’. Então, os alarmes e campainhas para gritar ‘impedimento!’ estão o tempo inteiro acionados.”
Algoritmos
O Seminário Pós-Verdade foi encerrado com uma mesa especial sobre “Quem são os algoritmos”, trazendo à tona a discussão sobre como essas sequências de regras e operações que permitem solucionar classes semelhantes de problemas em um computador estão influenciando os debates na sociedade. O jornalista especializado em análise de dados Marcelo Soares trouxe estudos mostrando que as reações extremas são as que mais engajam o internauta e que, quanto mais indignado, mais ele compartilha notícias falsas. “As redes sociais funcionam na base do algoritmo. Eles são cálculos que premiam comportamentos, muitas vezes de forma pavloviana [que segue os métodos e conceitos de Ivan Pavlov (1849-1936) sobre comportamentos condicionados com base no binômio estímulo-resposta].”
Esses algoritmos, apesar de serem criados com um objetivo inicial de facilitar a difusão da informação, têm levado ao que se convencionou chamar de “consequências não buscadas” quando usados para outras finalidades, permeadas por tendências, vieses e manipulações. Virgilio Almeida, engenheiro elétrico e professor do Departamento de Ciência da Computação da UFMG, sugeriu algumas estratégias de combate à desinformação, entre elas: educar as agências de publicidade e a mídia sobre “fake news”, seus impactos e consequências; dificultar a disseminação de notícias falsas e excluir disseminadores; criar algoritmos para identificar essas notícias e seus multiplicadores; e criar regras e legislações para regular a atividade online.
Almeida identificou em suas pesquisas que é crescente a tendência do uso de aplicativos de trocas de mensagens criptografadas, como o WhatsApp, para disseminar notícias falsas, o que limita as ações contrárias. “O papel da mídia tradicional vai ser muito importante, combate-se desinformação com mais informação correta.” No caso das redes sociais, o professor da UFMG afirma que os agentes de desinformação devem buscar o sequestro de contas reais para superar essas estratégias, enquanto utilizam inteligência artificial para tentar imitar o comportamento humano. “Cada vez que eu aperfeiçoo um algoritmo, os falsificadores de notícia, os agentes, também aperfeiçoam as suas técnicas.”
O filósofo Oswaldo Giacoia Jr., professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, discorreu sobre o fenômeno da pós-verdade nesse contexto de relativização dos fatos e sobre conceitos e autores relacionados ao tema. Giacoia discorda da tentativa de atribuir ao alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900) o predicado de “arauto da pós-verdade e apologeta ‘avant la lettre’ das ‘fake news’”, como também diverge daqueles que consideram o francês Michel Foucault (1926-1984) como precursor da cultura pós-factual por ter se dedicado à “desconstrução do conceito clássico de verdade”. “O pós-factual, tal como circula atualmente, coloca em questão a vigência da verdade como referência absoluta? A meu ver, a resposta é não. São sempre ainda os fatos reais, a narrativa verdadeira, que servem de critério de decisão no confronto e na denúncia das ‘fake news’.”
O Seminário Pós-Verdade reuniu mais de 300 pessoas no Centro de Convenções da Unicamp, que contou, na mesa de abertura, com a presença do reitor da Unicamp, Marcelo Knobel, do presidente do Conselho Científico e Cultural do IdEA e ex-reitor da Unicamp (1990-1994), Carlos Vogt, do coordenador executivo do IdEA, Alcir Pécora, e da editora do Núcleo Treinamento/Debates do Grupo Folha, Suzana Singer.